O Judeu

Meu marido sempre me falou que sua família descende de judeus, mas nunca me dei conta do que isso significava até assistir à aula de Literatura Portuguesa. Nesta aula estudamos sobre Antonio José da Silva, conhecido como O Judeu. 

Antonio José da Silva nasceu no Brasil e viveu em Portugal no século XVIII até à sua morte pela Inquisição. É considerado um dos dramaturgos portugueses mais importantes, junto de Gil Vicente e Almeida Garrett. É chamado também de fundador da ópera nacional, e é considerado um mártir da Inquisição.

Formou-se na Universidade de Coimbra e escreveu o conjunto da sua obra em Portugal entre 1725 e 1739.

O Judeu viveu num período político social, que corresponde ao reinado de D.João V que, vivendo no pleno dos ideais barrocos, em tudo o que estes representavam de luxúria, de ostentação e de prazeres do espírito, se fazia rodear de uma faustosa corte, que se alimentava dos lucros do ouro do Brasil. Este bem-estar da realeza e da nobreza protegida ofuscava, na verdade, as misérias de uma sociedade desestruturada do ponto de vista social e economicamente degradada. A Igreja constituía-se como um segundo poder dentro do estado e a Inquisição atuava impiedosamente sobre a heresia religiosa, perseguindo  judeus e cristãos-novos.

A família de António José mantinha residência no Brasil desde que os seus familiares maternos haviam emigrado para cá, fugidos do Santo Ofício, por práticas judaizantes. Durante algum tempo milhares de judeus tinham vivido em paz em terras brasileiras. Mas, em 1711, quando António José tinha apenas seis anos, toda a sua família é obrigada a abandonar o Rio de Janeiro e a regressar a Portugal na sequência de uma intensificação da atividade inquisitorial no Brasil.

Fixam residência em Lisboa. Em 1726 é obrigado a interromper os seus estudos, regressando a Lisboa onde o aguardava o seu primeiro processo inquisitorial. Entretanto, o Santo Ofício já prendera a sua mãe, Lourença Coutinho, e os seus dois irmãos, André e Baltasar. Em 13 de outubro de 1726 António José é encarcerado nos Estais (sede da Inquisição, ao Rossio, onde hoje existe o Teatro Nacional D. Maria II) e duramente torturado. Do seu processo, consta que “o réu, despojado dos vestidos que podiam servir de embaraço ao dito tormento, foi lançado no potro, e começado a atar, lhe foi notificado por mim, notário, em nome dos senhores inquisidores, que se naquele momento morresse, quebrasse algum membro, perdesse algum sentido, a culpa seria sua e não dos senhores inquisidores e mais ministros que foram na sua causa”. Sai ao fim de dez dias de tortura impiedosa, os seus bens confiscados e condenado a pena de cárcere e hábito penitencial perpétuo e ainda a ser instruído nos mistérios da fé.

Aos vinte e um anos, o curso de Direito interrompido, enredado nas malhas da brutal Inquisição, António José terá encontrado a sua forma de viver e sobreviver trabalhando nos escritórios de advocacia do pai e do irmão Baltasar. Em 1733 António Jose abre o Teatro do Bairro Alto e nele apresenta a sua primeira ópera, A Vida do Grande D.Quixote de La Mancha e do Gordo Sancho Pança.

Desde o período da dominação castelhana, a produção teatral de raiz nacional era insignificante e muito influenciada pelo modelo espanhol.

O teatro de A.J. da Silva não podia, pois, deixar de refletir influências notórias da comédia espanhola do séc. XVII, nomeadamente dos seus maiores expoentes, Lope de Vega e Calderon. Do primeiro, adota o Judeu o rigor formal da obra poética. Aliás, a arte de escrever comédias encontrava-se muito influenciada pela Arte Nuevo, um conjunto detalhado de cânones, redigidos por Lope, que pretendiam normalizar ou aconselhar o trabalho do escritor de comédias. De Calderon bebe o Judeu o espírito revolucionário mais de acordo com os ideais do Barroco, nomeadamente no que se refere à influência do melodrama e posteriormente da ópera que, surgida em Itália, rapidamente alastrava pelos palcos europeus.

António José é, pois, um homem do Barroco, que como criador vive em pleno o espírito dos tempos e, assim, aspira a uma nova arte teatral, menos vinculada à retórica e mais voltada para o deleite dos sentidos, que marcará definitivamente o teatro português. É na forma e na estrutura dramática que o Judeu inova. Por um lado escrevendo em prosa, uma novidade, já que “a prosa deixara de se usar no teatro desde Sá de Miranda, Camões e António Ferreira”; por outro, incorporando a música na intriga dramática, criando um modelo original de transição entre a comédia espanhola e o melodrama italiano e dando início, de forma incipiente, ao projeto da ópera nacional. Curiosamente, um regresso às grandes origens, já que os elementos: representação, recitativos em verso e canto, constituem uma espécie de síntese dos elementos da tragédia grega.

O Barroco, cuja origem se encontra fortemente associada à contrarreforma, constitui-se como um movimento de consciência que pretende reintroduzir a espiritualidade na criação humana, como reação ao classicismo, ao racionalismo pagão renascentista. A arte barroca já não repousa no equilíbrio, na simetria, na linha reta e na perspetiva, mas numa certa desordem, no desenho curvilínio, numa sensualidade exuberante que apela aos sentidos.

De que forma se refletem esses ideais no teatro? Através de uma representação exuberante, do recurso ao maravilhoso, de diálogos engenhosos ao serviço de intrigas que propiciam malabarismos de ilusão que deleitam os espectadores e os surpreendem a cada passo. Surgem as cenografias ilusórias, as tramoias espetaculares com frequentes mutações de cena garantidas por sofisticados mecanismos. Animam-se as ondas do mar, as nuvens do céu, as trovoadas e os raios, constroem-se máquinas sonoras poderosas, fazem-se descer ao palco os deuses do Olimpo, na cena irrompem sereias e dragões, e tudo se funde ao serviço de uma arte espetacular, de um grande teatro da ilusão.

“A “comedia de teatro”… apresentava-se triunfante e capaz de conquistar as plateias do espaço ibérico barroco. Oferecia um mundo tridimensional, composto de texto poético , efeitos visuais, sonoros e musicais, tudo enriquecido por uma forte componente visual (edifício, cena, vestuário, atores, mutações). Assim se procurava combinar numa mesma arte- antecipando Wagner!- o fónico e o visual, ou se se preferir, a combinação simbiótica entre o corporal e o espacial.”
José Oliveira Barata, História do Teatro em Portugal (séc.XVIII), António José da Silva (o Judeu) no Palco Joanino

As comédias do Judeu, que ele denomina de óperas joco-sérias, correm ao longo de dois planos e de uma dupla intriga: o fantástico e a realidade, o discurso sério e o gracioso, os poderosos e os criados, o amor nobre e o amor prosaico, o mundo sobrenatural e o mundo dos humanos. Assim se desenvolve uma estratégia dramatúrgica que permite um constante zapping entre espaços e situações, contribuindo para o progresso da intriga e para a comicidade da peça.

Dentre as obras do Judeu, o que mais me fascinou foi o teatro de bonecos.

Há alguns meses, durante um curso de imersão, tive que montar junto com alguns estudantes um pequeno teatrinho com bonecos improvisados de papel. O motivo foi o seguinte: deveríamos escolher um livro na biblioteca, e montar uma apresentação criativa para contar a história do livro. No caso do meu grupo, decidimos fazer um teatro de bonecos. Para tanto, foi necessário transcrever o livro em forma de teatro, o que me fez entender um pouco de como é difícil montar as cenas e as falas dos personagens. Adaptar uma história pronta para o teatro foi bastante difícil, especialmente porque os bonecos não possuem expressões faciais. Toda a dramaticidade precisava vir da composição dos bonecos em cena e as suas falas. Ah, e faltou um detalhe: o teatro deveria ser em língua japonesa.

O teatro foi uma experiência incrível, e que veio de encontro com o conteúdo apresentado em aula sobre o Judeu.

 

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